sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Hail to the Thief: documento do seu tempo

Estabilidade. Estabilidade. Não há civilização sem estabilidade social. Não há estabilidade social sem estabilidade inidividual."
Trecho de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley
"Nossa unidade, nossa nação, é o sério trabalho de líderes e cidadãos em todas as gerações. E essa é a minha solene promessa: trabalharei para construir uma nação única em igualdade e oportunidade."
George W. Bush
"América quando acabaremos com a guerra humana?
Vá se foder com a sua bomba atômica...
...Quando você tirará sua roupa?
Quando você se olhará através do túmulo?"

Allen Ginsberg

BRAVE NEW WORLD
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Final do século XX. O mundo é dominado pelo neoliberalismo. O signo da Globalização avança pelo planeta no mesmo ritmo frenético da grande teia mundial de computadores. A idéia de um mundo igualitário e harmônico é vendida com o mesmo entusiasmo do crescimento econômico e do alcance geográfico das novas tecnologias de informação.
Dezembro de 2000. Assume o poder da nação mais poderosa do mundo o filho de um ex-presidente, responsável pela manipulação de eleições na América-Latina e pela proliferação de ditadores e terroristas no Oriente Médio. A vitória é conseguida de maneira duvidosa, com fortes indícios de fraude eleitoral. Na pomposa cerimônia de posse do novo presidente norte-americano, a Marinha o saúda com o hino Hail To The Chief.
Setembro de 2001. Em Nova Iorque, na manhã do dia 11, acontece o maior atentado terrorista da história. Dois aviões sequestrados por terroristas de origem árabe se chocam contra as Torres do World Trade Center. Milhares de pessoas morrem sem saber o que estava acontecendo. A nação dos bravos e dos livres passa a viver sob constante medo e vigilância.
Março de 2003. Após meses de explicações, especulações e tentativas pacifistas, os Estados Unidos declaram guerra ao Iraque mesmo contra a posição das Nações Unidas. O país centro do chamado Eixo do Mal no Oriente Médio possuía supostas armas de destruição em massa que poderiam pôr em risco a segurança nacional e o controle do destino da nação ianque. As tropas invasoras assumem o controle do país.
Junho de 2003. O Radiohead lança seu sexto álbum, Hail To The Thief.

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O disco começa com 2+2=5, uma referência ao "duplipensar" de George Orwell em seu clássico Nineteen Eighty-Four. A canção começa com uma marcação eletrônica de fundo e a guitarra acompanhando o vocal de Yorke. Ele nos pergunta se realmente possuímos a coragem que dizemos ter: "Are you such a dreamer / To put the world to right?". A canção resume o pensamento dominatório dos sistemas que controlam o mundo contemporâneo, onde é mais vantajoso refugiar-se em casa do que confrontar o establishment. Thom Yorke, na pele de um simples cidadão, manifesta o medo, a prudência e a passividade, características do homem atual, são e comum: "I'll stay home forever / Where two and two always make five". Porém, é tarde demais. Ele já foi descoberto: "There is no way out / You can scream and you can shout / And it's too late now".

Pay attention!
Pay attention!
Pay attention!
Pay attention!
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De repente, a música assume uma intensidade avassaladora, como se estivesse correndo atrás daquele homem, como se não houvesse escapatória. A voz ordena que a autoridade suprema não seja nunca questionada e que a unidade estável seja mantida. Hail To The Thief.
Na segunda faixa do disco, o homem que anteriormente foi advertido é somente mais um cumprindo o seu papel passivo. A voz do comando ordena: Sit down. Stand Up. Ela alerta para o fato de que a qualquer momento toda a sua essência pode ser facilmente apagada: "We can wipe you out any time". No final da música a batida eletrônica assume o lugar do piano em um ritmo frenético, representando o tempo corrente, perfeito e inalterado, meticulosamente controlado. Tudo acontece. Nada muda.

The rain drops
The rain drops
The rain drops
The rain drops

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Em Sail To The Moon, o homem, absorto em seus pensamentos proibidos, avalia o presente com certo otimismo: "And maybe all the presidentes / Will know right from wrong". Nessa canção ele não é interrompido pela voz autoritária como nas últimas duas. Apenas um piano, que em geral no disco atua como agente humanizador em detrimento da eletrônica, que representa o pensamento sistemático e alienante. Em Backdrifts, o homem admite a condição de mero seguidor dos destinos traçados por aqueles que detém o poder. Todavia, como foi condicionado a isso, não há revolta, mas sim medo: "What the hell we've got nothing more to lose / One burst and we will probably crumble".

You fell into our arms
You fell into our arms

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Go To Sleep fala sobre a tentativa de se libertar do fardo que é possuir uma visão ampla da realidade. Tudo que o personagem quer é dormir e limpar-se dos pensamentos subversivos. Como em Admirável Mundo Novo (Brave New World, Aldous Huxley), os indivíduos que vivem sob condicionamento formam a linha de frente da evolução. Embora não tenha exata consciência disso, ele sabe que precisa se adequar para evitar a solidão excludente.
Where I And You Begin fala da distância entre as pessoas, desde que o medo em nome do bem comum passou a dominar o cotidiano dos sãos: "There's a gap in the between / There's a gap where we meet / Where I end and you begin again". O personagem, o homem que questiona, tem consciência da sua posição e da inevitável solidão: "I am up in the clouds / And I can't and I can't come down / I can watch and I can't take part / Where I end and where you start / Where you, you left me alone". A voz mais uma vez o ameaça.

I will eat you all alive
I will eat you all alive
I will eat you all alive
I will eat you all alive

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Em We Suck The Young Blood a voz que se faz ouvir é a do Grande Irmão, do controle, do poder. Ele pergunta se o homem se sente fraco, faminto e doente, e se ainda mantém sua alma pura e doce apesar de tudo. Ele Controle quer o seu sangue a todo custo, antes que contamine os demais. A música consiste basicamente em um piano e uma marcação de palmas em ritmo lento, dando a idéia de marcha, de avanço. No meio da canção uma tempestade sonora acontece, simulando o ataque ao indivíduo de alma pura, o câncer da civilização.
A oitava faixa, The Gloaming, é uma justificativa dos atos do poder por quem o posui. Ele se dirige a quem ainda se sente chocado por tais atos, e afirma que a ordem deve ser mantida a todo custo. "Murderers, you're murderers / We are not the same as you" - argumenta. Atentados terroristas e ações de violência injustificada configuram-se o verdadeiro crepúsculo da humanidade. A música, a mais eletrônica do álbum, serve como uma perfeita introdução para There There.

They will suck you down to the other side
They will suck you down to the other side

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O começo se dá com uma batida de tambores sincopada e a guitarra acompanhando o ritmo. There There é a viagem que o homem de coração puro faz até o mundo real, uma paisagem que não lhe é familiar: "I go walking in your landscape / Broken branches / Trip me as I speak". A voz do comando, que o acompanha nessa viagem explica o significado do mundo que conhecemos: "Just cos you feel it / Doesn't mean it's there". Não somos nada, e nada é real. Sabemos apenas o que querem que saibamos. A voz no entanto alerta para não cruzarmos essa linha: "There's always a siren / Singing you to shipwreck (Don't reach out, don't reach out)". O homem de estranha a desconhecida paisagem: "Why so green and lonely? / Lonely, lonely...". E no final conclui, ciente da sua e da nossa insignificância: "We are accidents waiting / Waiting to happen". Ele não está condicionado a cruzar a linha. Na verdade ninguém está.
Desolado, na música I Will, o homem promete a si mesmo, impotente: "I won't let this happen to my children / Meet the real world coming out of your shell". Conhecer o mundo real foi uma experiência traumática. Ele lembra da infância, enquanto tudo era mais simples e seguro. Agora, é apenas alguém que sabe demais e que paga por isso. Está sozinho e seu futuro é incerto. Quer voltar a época quando 2+2 era igual a 5. A canção com base apenas em um piano é curta e comovente.
Em A Punch-Up at the Wedding, a voz volta a falar com ele. Reclama de sua ingratidão: "I don't know / Why you bother / Nothing's ever good enough to you". Ela manifesta sua raiva contra o homem: "You had to piss on our parade / You had to shred our big day / You had to ruin it for all concerned". Acusa-o de hipócrita e oportunista, e o deixa sozinho mais uma vez.

Don't infect me with your poison
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Myxamatosis, a 11ª faixa do disco, é tão confusa quanto bizarra. O personagem, na tentativa de justificar seu desvio de rumo, diz que está doente: "...that wasn't my intention / I did it for a reason / It must have got mixed up / Strangled beaten up / I got myxamatosis". O caótico poder da guitarra e o ritmo incomum da música contrastam com a serena faixa seguinte, Scatterbrain. "Yesterday's headlines blown by the wind / Yesterday's people end up scatterbrain". Tudo é descartável, ninguém é importante.
A última, A Wolf at The Door, é uma lista dos maiores medos e ameaças que sofremos no paranóico mundo contemporâneo. "I keep the wolf from the door / But he calls me up / Calls me on the phone / Tells me all the ways / That he's gonna mess me up / Steal all my children / If I don't pay the ransom". O pavor despertado pelo inimigo oculto, aqui representado na figura de um lobo, justifica a violência que o vocal de Thom Yorke transmite na canção. Ela termina com o narrador aceitando passivamente as imposições que a atmosfera de incerteza e pânico lhe trazem. Agora, ele não está mais sozinho. Não há revolta, não há saída.

So I just go.
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A poesia do Radiohead, tal qual a literatura de Huxley e Orwell, não oferece solução. Em Hail To The Thief, nada é linear, estável, delimitado. Apesar de ser o trabalho de mais fácil assimilação e de conceito mais bem definido desde The Bends, o álbum é um legítimo e definitivo documento do momento atual, uma época obcecada por estabilidade e controle. E talvez não haja mesmo solução. Talvez estejamos fadados a viver em um mundo projetado por aqueles que o manipulam. Todavia, embora nossa condição a princípio pareça destinada apenas a um papel coadjuvante, as letras do Radiohead nos fazem crer que em essência ainda somos seres que anseiam desesperadamente por libertação. Porém, toda grande mudança ameaça a estabilidade, causando medo. O medo é a lei que rege as diretrizes da política do Grande Irmão de Orwell e da América de Bush. O Radiohead consegue assim, na condição de uma das maiores bandas contemporâneas e de toda a história, com seu novo álbum, chegar a um patamar elevado de percepção e sublimação da realidade, que extrapola em muito as fronteiras do sucesso artístico.

 

 

Essa matéria salvei nos meus arquivos na época do lançamento do disco e perdi o endereço original dela, o autor me também é desconhecido.

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