Estabilidade. Estabilidade. Não há civilização sem estabilidade social. Não há estabilidade social sem estabilidade inidividual."
Trecho de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley
"Nossa unidade, nossa nação, é o sério trabalho de líderes e cidadãos em todas as gerações. E essa é a minha solene promessa: trabalharei para construir uma nação única em igualdade e oportunidade."
George W. Bush
"América quando acabaremos com a guerra humana?
Vá se foder com a sua bomba atômica...
...Quando você tirará sua roupa?
Quando você se olhará através do túmulo?"
Allen Ginsberg
Final do século XX. O mundo é dominado pelo neoliberalismo. O signo da Globalização avança pelo planeta no mesmo ritmo frenético da grande teia mundial de computadores. A idéia de um mundo igualitário e harmônico é vendida com o mesmo entusiasmo do crescimento econômico e do alcance geográfico das novas tecnologias de informação.
Dezembro de 2000. Assume o poder da nação mais poderosa do mundo o filho de um ex-presidente, responsável pela manipulação de eleições na América-Latina e pela proliferação de ditadores e terroristas no Oriente Médio. A vitória é conseguida de maneira duvidosa, com fortes indícios de fraude eleitoral. Na pomposa cerimônia de posse do novo presidente norte-americano, a Marinha o saúda com o hino Hail To The Chief.
Setembro de 2001. Em Nova Iorque, na manhã do dia 11, acontece o maior atentado terrorista da história. Dois aviões sequestrados por terroristas de origem árabe se chocam contra as Torres do World Trade Center. Milhares de pessoas morrem sem saber o que estava acontecendo. A nação dos bravos e dos livres passa a viver sob constante medo e vigilância.
Março de 2003. Após meses de explicações, especulações e tentativas pacifistas, os Estados Unidos declaram guerra ao Iraque mesmo contra a posição das Nações Unidas. O país centro do chamado Eixo do Mal no Oriente Médio possuía supostas armas de destruição em massa que poderiam pôr em risco a segurança nacional e o controle do destino da nação ianque. As tropas invasoras assumem o controle do país.
Junho de 2003. O Radiohead lança seu sexto álbum, Hail To The Thief.
O disco começa com 2+2=5, uma referência ao "duplipensar" de George Orwell em seu clássico Nineteen Eighty-Four. A canção começa com uma marcação eletrônica de fundo e a guitarra acompanhando o vocal de Yorke. Ele nos pergunta se realmente possuímos a coragem que dizemos ter: "Are you such a dreamer / To put the world to right?". A canção resume o pensamento dominatório dos sistemas que controlam o mundo contemporâneo, onde é mais vantajoso refugiar-se em casa do que confrontar o establishment. Thom Yorke, na pele de um simples cidadão, manifesta o medo, a prudência e a passividade, características do homem atual, são e comum: "I'll stay home forever / Where two and two always make five". Porém, é tarde demais. Ele já foi descoberto: "There is no way out / You can scream and you can shout / And it's too late now".
Pay attention!
Pay attention!
Pay attention!
Pay attention!
De repente, a música assume uma intensidade avassaladora, como se estivesse correndo atrás daquele homem, como se não houvesse escapatória. A voz ordena que a autoridade suprema não seja nunca questionada e que a unidade estável seja mantida. Hail To The Thief.
Na segunda faixa do disco, o homem que anteriormente foi advertido é somente mais um cumprindo o seu papel passivo. A voz do comando ordena: Sit down. Stand Up. Ela alerta para o fato de que a qualquer momento toda a sua essência pode ser facilmente apagada: "We can wipe you out any time". No final da música a batida eletrônica assume o lugar do piano em um ritmo frenético, representando o tempo corrente, perfeito e inalterado, meticulosamente controlado. Tudo acontece. Nada muda.
The rain drops
The rain drops
The rain drops
The rain drops
Em Sail To The Moon, o homem, absorto em seus pensamentos proibidos, avalia o presente com certo otimismo: "And maybe all the presidentes / Will know right from wrong". Nessa canção ele não é interrompido pela voz autoritária como nas últimas duas. Apenas um piano, que em geral no disco atua como agente humanizador em detrimento da eletrônica, que representa o pensamento sistemático e alienante. Em Backdrifts, o homem admite a condição de mero seguidor dos destinos traçados por aqueles que detém o poder. Todavia, como foi condicionado a isso, não há revolta, mas sim medo: "What the hell we've got nothing more to lose / One burst and we will probably crumble".
You fell into our arms
You fell into our arms
Go To Sleep fala sobre a tentativa de se libertar do fardo que é possuir uma visão ampla da realidade. Tudo que o personagem quer é dormir e limpar-se dos pensamentos subversivos. Como em Admirável Mundo Novo (Brave New World, Aldous Huxley), os indivíduos que vivem sob condicionamento formam a linha de frente da evolução. Embora não tenha exata consciência disso, ele sabe que precisa se adequar para evitar a solidão excludente.
Where I And You Begin fala da distância entre as pessoas, desde que o medo em nome do bem comum passou a dominar o cotidiano dos sãos: "There's a gap in the between / There's a gap where we meet / Where I end and you begin again". O personagem, o homem que questiona, tem consciência da sua posição e da inevitável solidão: "I am up in the clouds / And I can't and I can't come down / I can watch and I can't take part / Where I end and where you start / Where you, you left me alone". A voz mais uma vez o ameaça.
I will eat you all alive
I will eat you all alive
I will eat you all alive
I will eat you all alive
Em We Suck The Young Blood a voz que se faz ouvir é a do Grande Irmão, do controle, do poder. Ele pergunta se o homem se sente fraco, faminto e doente, e se ainda mantém sua alma pura e doce apesar de tudo. Ele Controle quer o seu sangue a todo custo, antes que contamine os demais. A música consiste basicamente em um piano e uma marcação de palmas em ritmo lento, dando a idéia de marcha, de avanço. No meio da canção uma tempestade sonora acontece, simulando o ataque ao indivíduo de alma pura, o câncer da civilização.
A oitava faixa, The Gloaming, é uma justificativa dos atos do poder por quem o posui. Ele se dirige a quem ainda se sente chocado por tais atos, e afirma que a ordem deve ser mantida a todo custo. "Murderers, you're murderers / We are not the same as you" - argumenta. Atentados terroristas e ações de violência injustificada configuram-se o verdadeiro crepúsculo da humanidade. A música, a mais eletrônica do álbum, serve como uma perfeita introdução para There There.
They will suck you down to the other side
They will suck you down to the other side
O começo se dá com uma batida de tambores sincopada e a guitarra acompanhando o ritmo. There There é a viagem que o homem de coração puro faz até o mundo real, uma paisagem que não lhe é familiar: "I go walking in your landscape / Broken branches / Trip me as I speak". A voz do comando, que o acompanha nessa viagem explica o significado do mundo que conhecemos: "Just cos you feel it / Doesn't mean it's there". Não somos nada, e nada é real. Sabemos apenas o que querem que saibamos. A voz no entanto alerta para não cruzarmos essa linha: "There's always a siren / Singing you to shipwreck (Don't reach out, don't reach out)". O homem de estranha a desconhecida paisagem: "Why so green and lonely? / Lonely, lonely...". E no final conclui, ciente da sua e da nossa insignificância: "We are accidents waiting / Waiting to happen". Ele não está condicionado a cruzar a linha. Na verdade ninguém está.
Desolado, na música I Will, o homem promete a si mesmo, impotente: "I won't let this happen to my children / Meet the real world coming out of your shell". Conhecer o mundo real foi uma experiência traumática. Ele lembra da infância, enquanto tudo era mais simples e seguro. Agora, é apenas alguém que sabe demais e que paga por isso. Está sozinho e seu futuro é incerto. Quer voltar a época quando 2+2 era igual a 5. A canção com base apenas em um piano é curta e comovente.
Em A Punch-Up at the Wedding, a voz volta a falar com ele. Reclama de sua ingratidão: "I don't know / Why you bother / Nothing's ever good enough to you". Ela manifesta sua raiva contra o homem: "You had to piss on our parade / You had to shred our big day / You had to ruin it for all concerned". Acusa-o de hipócrita e oportunista, e o deixa sozinho mais uma vez.
Don't infect me with your poison
Myxamatosis, a 11ª faixa do disco, é tão confusa quanto bizarra. O personagem, na tentativa de justificar seu desvio de rumo, diz que está doente: "...that wasn't my intention / I did it for a reason / It must have got mixed up / Strangled beaten up / I got myxamatosis". O caótico poder da guitarra e o ritmo incomum da música contrastam com a serena faixa seguinte, Scatterbrain. "Yesterday's headlines blown by the wind / Yesterday's people end up scatterbrain". Tudo é descartável, ninguém é importante.
A última, A Wolf at The Door, é uma lista dos maiores medos e ameaças que sofremos no paranóico mundo contemporâneo. "I keep the wolf from the door / But he calls me up / Calls me on the phone / Tells me all the ways / That he's gonna mess me up / Steal all my children / If I don't pay the ransom". O pavor despertado pelo inimigo oculto, aqui representado na figura de um lobo, justifica a violência que o vocal de Thom Yorke transmite na canção. Ela termina com o narrador aceitando passivamente as imposições que a atmosfera de incerteza e pânico lhe trazem. Agora, ele não está mais sozinho. Não há revolta, não há saída.
A poesia do Radiohead, tal qual a literatura de Huxley e Orwell, não oferece solução. Em Hail To The Thief, nada é linear, estável, delimitado. Apesar de ser o trabalho de mais fácil assimilação e de conceito mais bem definido desde The Bends, o álbum é um legítimo e definitivo documento do momento atual, uma época obcecada por estabilidade e controle. E talvez não haja mesmo solução. Talvez estejamos fadados a viver em um mundo projetado por aqueles que o manipulam. Todavia, embora nossa condição a princípio pareça destinada apenas a um papel coadjuvante, as letras do Radiohead nos fazem crer que em essência ainda somos seres que anseiam desesperadamente por libertação. Porém, toda grande mudança ameaça a estabilidade, causando medo. O medo é a lei que rege as diretrizes da política do Grande Irmão de Orwell e da América de Bush. O Radiohead consegue assim, na condição de uma das maiores bandas contemporâneas e de toda a história, com seu novo álbum, chegar a um patamar elevado de percepção e sublimação da realidade, que extrapola em muito as fronteiras do sucesso artístico.
Essa matéria salvei nos meus arquivos na época do lançamento do disco e perdi o endereço original dela, o autor me também é desconhecido.
0 comentários:
Postar um comentário