Agora é oficial. O século 21, musicalmente, começou e quem veio pra mostrar e comprovar foi uma banda inglesa, de Oxford, a melhor banda de rock do mundo, também conhecida como Radiohead
Um outro inglês, Eric Hobsbawn, já tinha nos informado que o século 20 foi meio preguiçoso e só resolveu começar já entrado na adolescência, em 1914, com a Primeira Guerra Mundial. Apesar de meio temporão, o século 20 também foi um apressado, e resolveu se terminar todo bem antes da hora marcada, lá por 1989, com o final do império soviético.
Já são vinte anos e a gente aqui, batendo o pezinho e perguntando a nós mesmos qual o sinal ou sinais de que o novo século 21 começou e quando. Eu, pelo menos, entendi a mensagem no último domingo, quando o messias apareceu na forma do Thom Yorke, um vocalista desse tamanhinho e muito atormentado, que cantou os novos tempos e nós, mais de trinta mil seguidores, fomos junto. Que momento, minha gente! Até esse insensível aqui se emocionou e isso não acontecia desde, quando mesmo?
Porque eu não vou a shows. Já que somos íntimos, meus milhares de leitores e eu, posso confessar vários dos meus muitos pecados, em especial os piores. Não gosto de brócolis, não gosto de teatro, ou ao menos de atores vivos na minha frente, e não vou a shows por motivos parecidos.
Adoro música, como todos os leitores e o senhor aqui ao lado. Mas não sinto um interesse especial por músicos, que falam uma língua que eu entendo quando escuto a musica que fazem, e várias linguas que eu não entendo se estamos no mesmo bar.
Não só por isso. Shows, concertos de rock em espaços grandes, fazem parte da minha visãozinha do inferno, que inclui encontros evangélicos, festivais de axé e festa do peão boiadeiro. Pagar muito dinheiro, achar uma forma de transporte que nos leve e traga, enfrentar o calor, ou a chuva, ou ambos e, muito pior, os banheiros químicos, para finalmente ver lá longe em um palco um grupo de músicos que eu escutaria melhor em casa, simplesmente não faz sentido pra esse neto inconformado da minha avó Jovita.
E tudo isso eu enfrentei nesse ultimo domingo.
Já comecei treinando no sábado, rompendo com a minha norma de não ir ao teatro ou a shows e indo ver uma algo que era ambos, o confuso espetáculo Homemusica do Michel Melamed. Devidamente aquecido, lá fui eu Francisco Morato abaixo, até a distante Chácara do Jockey, um lugar que reúne todos os ingredientes que listei acima e ainda um suave cheiro de estábulo, uma beleza.
E não foi apenas isso: para finalmente poder ver em ação a melhor banda de rock do mundo, eu precisei ver a pior, enfrentando a indigência musical da Los Hermanos. Uma banda carioca chamada Los Hermanos deveria se limitar a churrascarias, e essa resolveu ganhar o mundo. Azar nosso. O oposto de amor não é o ódio, mas a indiferença. O oposto de boa música não é música ruim, mas musica que não faz diferença.
Portanto, prezados leitores, tudo que eu odeio em shows de rock se fez presente nesse show e o sofrimento foi, sim, enorme. Eu me senti como um peregrino se dispondo a fazer o Caminho de Santiago, pagando pelos pecados e por não gostar de brócolis, esperando apenas que tudo isso me trouxesse, ao final, uma visão do Senhor e um tubo de Cataflan em spray.
A visão eu tive. A visão deslumbrante de um espetáculo de grande música, de um tipo incomum e que melhor se constrói ao vivo, em um grande espaço, diante de uma multidão a ser convertida, na melhor síntese do que possa ser um espetáculo de rock nesses tempos e do que ele pode proporcionar, quando se dispõe a isso.
A nossa época, no que ela tem de civilizado, oferece dois momentos para o encontro de grandes números de pessoas. Jogos de futebol e concertos de música. Os jogos substituem as batalhas e os concertos substituem as igrejas, acho, talvez essa seja a razão para a força de uma banda messiânica, como U2, ou pseudo-satânicas, como Rolling Stones e toda aquela cambada do metal. Nesses encontros, a música cede lugar para um sentimento místico e estar presente é mais importante do que ouvir, mais ou menos como uma missa, nos velhos tempos. Nesse sentido, iluminação, efeitos especiais, telões, todos compõe essa construção do ambiente de templo. Isso se fez particularmente presente no palco da Radiohead, mas deixou de ser um problema segundos após a abertura do concerto, quando tudo aquilo fez absoluto sentido, essa sendo a maior diferença entre decoração e arquitetura. O que a Radiohead fez foi construir o seu templo e oferecer o seu ritual, a todos, até mesmo aos fans do Los Hermanos, que devem estar sofrendo as sequelas psicológicas até agora.
E o ritual da Radiohead era centrado no ouvir! O que seduzia era a música e não a iluminação ou os fogos de artifício. Os telões mostravam não os músicos, mas a manufatura da música, ali, sendo construída diante dos nossos olhos e ouvidos e esse discurso fundamental mostra porque Radiohead é a banda que é, tão superior, musical e conceitualmente a tudo isso que está aí.
Desde a abertura, com 15 Steps, até o final, com a tradicional Creep, tudo que a banda fez foi apresentar o seu som único e manter uma multidão presa a ele. Não importava se a música era conhecida, se tinha feito sucesso nas rádios ou na web, não importava a complexidade e relativa atonalidade de algumas construções, contra tudo, contra o século 20 e suas promessas de facilidades das ultimas décadas, a Radiohead manteve todo mundo atento, comendo o que era oferecido em um banquete ritual dos mais raros, talvez o único que eu tenha presenciado, salvo um comício com o Lula dos velhos tempos.
talvez por isso eu tenha sentido o século 21 entrando por ali, por alguma fresta. Aquela música representa ao mesmo tempo a continuidade do rock - em sua capacidade única de traduzir essa época de transformações intensas, o seu presente constante e aceleração rumo a um futuro mais e mais imprevisível -, com a era pós-industrial, centrada na multiplicidade, onde o diverso e o fragmental são áreas escassamente separadas. A musica do Radiohead nega a fragmentação, afirma a complexidade e aponta o caminho da salvação, a capacidade que precisamos desenvolver de nos sustentarmos na multiplicidade, e não na unicidade, dos discursos. A música que a Radiohead nos apresentou é a alternativa mais elaborada, porque compreendida por todos, para o fundamentalismo, e nosso século implorava por algo assim, para finalmente poder começar.
Resenha por: Marcelo Carneiro da Cunha
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