Tudo no seu lugar certo. Mesmo sem nunca ter ido a um show desses caras, eu já sabia que seria aquilo – a perfeição. De quem eu estou falando? No caso de alguém ter chegado agora de um retiro de dez anos no Círculo Polar Ártico, vale a pena dar um pouco mais de informação sobre nosso tema de hoje: a apresentação de uma das bandas mais esperadas por estas terras, que finalmente aconteceu neste fim de semana. Como diziam as manchetes de quando os Rolling Stones finalmente vieram ao Brasil, a espera acabou: o Radiohead tocou na sexta-feira (20) no Rio, e domingo (22), em São Paulo. Nessa segunda noite eu estava, digamos, “ocupado” – trabalhando. Mas a do Rio eu peguei, depois de um dia atribulado (minha sexta começou cedo em São Paulo entrevistando o estilista Marc Jacobs, e continuou numa usina de reciclagem de lixo no bairro do Caju, no Rio). Já no início da noite, de volta à Redação do “Fantástico”, eu olhava constantemente o relógio, torcendo para que a lista de coisas para adiantar não colocasse em risco a operação que eu tinha montado para ver o Radiohead no Sambódromo.
Morto do pescoço para cima – essa era a minha imagem olhando para a tela do computador da minha mesa, às 20h30: um zumbi tentando ficar livre de todas as obrigações, para sair do bairro do Jardim Botânico no horário limite de não perder o show - 21h30 (não cheguei a duvidar nem por um momento da pontualidade prometida – e cumprida – pelo Radiohead). Saí no último segundo possível, e, quando o táxi me deixou na boca da Sapucaí – um lugar que costumo freqüentar só no Carnaval para experimentar a incomparável sensação de passar da concentração da escola onde saio para o desfile em si –, pouco depois das 22h, ao ouvir nos auto-falantes lá longe um reggae indistinto, sabia que aquela não era “minha” banda. Eu havia chegado no intervalo. E que não era entre Los Hermanos (que lamentavelmente perdi) e Kraftwerk (que adoraria ter visto mais uma vez), mas entre Kraftwerk e Radiohead. Alguma coisa estava para acontecer, porém…
Só porque você a sente, não significa que ela está ali. Será mesmo que eles, os caras do Radiohead iriam entrar dali a alguns minutos naquele palco? Obviamente, meu nível de expectativa estava nas alturas. Os amigos que encontrava pelo Sambódromo já estavam em diferentes níveis de, digamos, excitação – e eu tentava decidir em qual deles me encaixar. Antes que eu fizesse essa escolha, porém, como que trapaceado pelo meu relógio que esqueci de consultar, as luzes se apagam e em questão de segundos reconheço “15 step”. “Achtung baby!” – o show já é.
Eu costumava pensar que não existia futuro algum. Pelo menos não nos shows ao vivo. Meus leitores mais dedicados sabem – e quem já leu meu livro “De a-ha a U2” também – que eu tenho um “problema” com bandas se apresentando ao vivo. Essa é uma questão muito longa que não vale a pena discutir (novamente) hoje por aqui, mas basta dizer que eu sempre preferi a música gravada à interpretada no palco. No entanto, mesmo antes de “15 step” acabar, quando os primeiros acordes letais de “Airbag” ainda eram uma possibilidade, eu saquei que ali poderia voltar a sentir o mesmo entusiasmo por esse tipo de performance que vivi quando vi Kurt Cobain, no saudoso Hollywood Rock, cuspir nas lentes das câmeras que transmitiam o show do Nirvana ao vivo. Radiohead estava se apresentando – e, em questão de minutos, tinha tomado completamente o poder naquela noite: todos ali estavam irremediavelmente sob seu comando.
Por um minuto ali, eu me perdi. Estava tão atordoado de estar finalmente assistindo a um show do Radiohead que, a exemplo do fora que tomei de Michael Stipe (R.E.M.) quando me vi entrevistado esse grande ídolo pela primeira vez (ele, percebendo que eu estava à beira da tietagem, encerrou a entrevista na mesma hora – mais uma história do meu livro de encontros com os grandes nomes do pop), dei uma “descolada” de mim mesmo. Foi como se eu tivesse saído do meu corpo e tivesse tido assim a chance de ver eu mesmo vendo uma banda adorada tocar – e, pior (ou melhor?): como se eu não estivesse acreditando no que estava vendo. “There there”, “All I need”, “Karma Police”, “Nude”, “Weird fishes/Arpeggi” – o que estava acontecendo? Eu tinha a ilusão que eles estavam tocando todas as músicas que eu havia pedido. Será que Thom Yorke recebeu meu email? O bilhete que deixei na portaria do hotel?
Suas orelhas deveriam estar queimando. Não havia passado ainda nem uma hora de show, e você tinha a impressão de que já tinha ouvido todos os sons do universo. Mas aí, depois de “The national anthem” e “The gloaming” – ambas devastadoras – veio “Faust arp”. E tudo começou a desmoronar. Para cima. Na sua intrincada simplicidade, nos seus frágeis dois minutos e pouco, a música era o respiro necessário para fãs que, como eu, precisavam se conectar novamente com seus sentidos. Aos poucos, enquanto nossos pés se aproximavam novamente do chão, a serenidade ia voltando ao Sambódromo, e o único desejo desse humilde servo era que toda a experiência de até então, como diz a própria música, duplicasse e triplicasse. Um momento de paz, enfim – era o que eu pensava. Mas aí veio “No surprises”…
Eu estou surpreso que sobrevivi. Os cilindros iluminados, que definiam brilhantemente o espaço de apresentação da banda com cores, desenhos e movimentos coreografados, agora pintava uma forma geométrica estática, que lembrava uma igreja – mas nós ali na platéia sabíamos que não estávamos diante de nenhum templo, mas do próprio céu. O impacto dessa dobradinha (“Faust arp/No surprises”) certamente vai ter conseqüências para o resto da minha vida. Mas enquanto estava ali, assistindo tudo, sem tempo nem sobriedade para codificar o que se passava, quem disse que eu conseguia elaborar sobre isso? “Jigsaw falling into place” não me ajudou em nada a recobrar a consciência – e foi só no pequeno hiato entre essa música e a introdução da seguinte (que eu custava a reconhecer), que reencontrei algum equilíbrio. Foi então que ouvi Thom Yorke murmurar “who’s in the bunker?” – e tudo ficou novamente fora de controle.
Aqui eu podia tudo o tempo todo. E esse estranho sentimento não era só meu. Muitas pessoas em volta de mim que demoraram ainda mais que eu para reconhecer “Idioteque” (uma das cinco melhores faixas que o Radiohead já compôs, na minha opinião) já dançavam involuntariamente – como que tomados pelo transe de uma pista de dança surrada às 4h30 da manhã. Mas ainda era por volta de meia-noite (se é que eu podia confiar nos relógios à minha volta) e eu não sabia mais explicar nada. “I might be wrong”, “Street spirit (fade out)”, “Bodysnatchers” e “How to disappear completely” encerraram o que era – um pouco obviamente demais – um “boa noite” de mentira.
Você vai para o inferno pelo que sua mente suja está pensando. Mas mesmo assim, você (e todo mundo) não sai do lugar desejando que o Radiohead voltasse logo e tocasse aquelas músicas que você passava incessantemente pela cabeça – as que você não tinha ouvido ainda. E poucos minutos depois, como que para recompensar esse seu esforço mnemônico, eles entram como uma seqüência inacreditável: “Videotape” (a segunda melhor faixa de “In rainbows”, depois de “Faust arp”), “Paranoid android” (!!!), “House of cards” (com o mantra “I don’t want to be your friend, I just want to be your lover”), “Just” (das antigas!), e, claro, “Everything in its right place”. Achei que tinha terminado. Fui deixando a praça da Apoteose vagarosamente, ainda com os ecos da introdução inesquecível da faixa de abertura de “Kid A”, quando, da maneira mais discreta possível, Yorke volta ao palco para cantar “You and whose army?” – discrição, no caso, marcada pela imagem do rosto multiforme do cantor cantando bem próximo a uma das câmeras do palco, enquanto também trabalhava o teclado. “Reckoner” veio em seguida – e, embora impecável, parecia uma canção improvável para fechar uma apresentação desse porte. Eles tinham que cantar mais uma… talvez “aquela”? Meu palpite era de que eles viriam com “Fake plastic trees” – que embora não fosse das mais animadas do cânone “radioheadiano”, fecharia o “set” como um clássico indiscutível. Mas aí veio “Creep”.
A poeira e a gritaria. Era só isso que eu via quando, com as luzes todas do palco no talo – e ajustadas para emitir um branco intenso –, vinha aquele refrão surreal, o maior hino (ao lado de “Loser”, de Beck) ao fracasso da adolescência que não acaba nunca. De vez em quando um flash multicolorido quebrava aquela claridade, surpreendendo os olhos que achavam que já tinham registrado todas as variações possíveis dos criativos enquadramentos dos próprios membros da banda pelo palco, projetados nos telões eletrônicos. “What the hell I’m doing here?” – quisera eu saber…
Sem alarmes e sem surpresas. Isso que acabei de relatar aqui – uma descrição aproximada da experiência de assistir ao primeiro show do Radiohead no Brasil –, por mais arrebatador que possa parecer, era exatamente o que eu esperava. Aliás, foi mais: eu esperava tudo – e veio “tudão”. Lá dos idos de 1993 – quando eu, por acaso, capturei a banda na primeira entrevista para a televisão da carreira deles (sim, outra história contada em “De a-ha a U2”) – até a primeira audição (e todas as outras que vieram) de “In rainbows”, eu já contava com isso. A surpresa maior seria se eles não cumprissem essa promessa. Mas eles não fariam isso comigo – nem com ninguém. E é por isso que prestei uma pequena homenagem à banda neste texto que, muito provavelmente, eles nunca vão ter a chance de ler. Que homenagem? Você me acompanhou até aqui e ainda não percebeu? Tem certeza de que é um fã do Radiohead? Se você descobriu a “charada”, seu comentário com a resposta será tão bem-vindo quanto outras opiniões sobre o show (a sede de saber o que as outras pessoas acharam desse evento é insaciável – passei o fim de semana discutindo esse assunto, e ainda quero mais!). Se não sacou ainda, na quinta eu desvendo o mistério. Quer uma pista para ajudar? O segredo está sempre no começo de tudo…
ZECA CAMARGO
NO BLOG G1
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