Aquele ali não sou eu. Eu vou aonde quero. Eu atravesso paredes. Eu flutuo pelo Canal do Mangue. Eu não estou aqui. Isso não está acontecendo. Eu não estou aqui. Antes de o Radiohead tocar “How to disappear completely”, diante dos meus olhos, nesta Praça da Apoteose, nesta sexta-feira 20 de março de 2009, os versos se materializam na cabeça. Eu não estou aqui.
Estou em outro lugar. Aonde só a grande música pode me levar.Entre efeitos de luz e alto-falantes no estado da arte, Thom Yorke, Ed O’Brien, Phil Selway, Jonny e Colin Greenwood atacam “The national anthem”. Atacam é verbo escolhido a dedo. As guitarras são sirenes que alertam para o bombardeio tocado pelo baixo e pela bateria. Não há abrigo possível. É uma das minhas favoritas. Parece “Whole lotta love”, do Led Zeppelin. Parece “Bullet the blue sky”, do U2. Só que melhor.
Nada havia me preparado para isso. Em “Kid A”, o álbum, “The national anthem” era mais intrincada, quase free jazz graças aos instrumentos de sopro. No palco, a energia do quinteto compensa a ausência dos metais. Nada havia me preparado para isso. Cheguei com um pé inteiro mais um calcanhar atrás, com medo de me decepcionar. Já aconteceu-me antes, por exemplo, aqui mesmo, na Apoteose, com um David Bowie de radinho de pilha.
Li que o show do Radiohead era “profissional”, no mau sentido, talvez até “frio”. Desde a primeira música, “15 step”, nota-se que é profissional, sim, no bom sentido. No nível do som, na definição do telão, nas estalactites de luz. Mas frio... “There there” logo prova que não. Percussão quase pura, O’Brien e Jonny batendo tambor com Selway. Claro, sempre haverá quem ache “chato”. Mas para quem tem dificuldade de se relacionar com a tristeza da vida sempre haverá as baianas pernudas e suas canções cheias de onomatopeias.Antes do Radiohead, a temperatura estava estranha para março. O Kraftwerk fez uma versão condensada do show de 2004 no TIM Festival, gélida, coisa de se esperar dos alemães.Antes ainda, Los Hermanos estavam meio fora de forma, mornos, coisa de se esperar de quem está parado há dois anos. Não o Radiohead.Descubro que ele consegue ser cabeça e quente, simultaneamente. Nada havia me preparado para isso, acho que já disse.
O Radiohead plana por “No surprises”, “Videotape”, “Paranoid android”... E comprova, aqui e agora, por que é a mais importante banda de música popular em atividade neste planeta.O termo “rock” só se aplica ao Radiohead como conceito vampiresco, expansionista, não como delimitação musical. Em transe estético, dou 10, nota 10, em todos os quesitos: aparato técnico, garra, repertório, dinâmica, inventividade. No palco como nos discos, as suas músicas nunca terminam do jeito que começam: elas se reinventam.
Na vã tentativa de me preparar para isso, eu tinha ouvido atentamente os dois únicos registros oficiais do Radiohead ao vivo. Primeiro, “I might be wrong: live recordings”, lançado em 2001. Um de seus pecados era ser curto demais, 40 minutos, oito músicas. Todas tiradas de “Kid A” e “Amnesiac”, álbuns siameses separados no estúdio, experimentais, geniais. Todas menos “True love waits”, linda. “O verdadeiro amor espera em sótãos assombrados”? Brrrrr. O outro pecado foi costurar retalhos de quatro shows, Oxford, Berlim, Oslo, Vaison La Romaine. Ficou sem a dinâmica da apresentação ao vivo.O segundo disco oficial do Radiohead ao vivo só veio à luz no ano passado, apenas na Holanda, pelo selo Immortal, mas foi registrado na mesma excursão em que “I might be wrong”. É um duplo chamado “Radiohead rocks Germany 2001”. A banda sacode a Alemanha na noite de 1ode junho, num festival em Nurburg. Traz 22 músicas e, embora às vezes a voz e o violão estejam um tanto à frente dos demais, soa de fato como um show, completo e íntegro. Abre com “The national anthem” e fecha, 108 minutos depois, com “How to disappear completely”. Chega mais perto deste êxtase no Catumbi.
Ainda assim, nada havia me preparado para isso. Até “Radiohead rocks Germany 2001” aparecer também em DVD, o Radiohead não tinha audiovisual oficial decente, a não ser por... Um show muito das antigas. “Live at the Astoria”, de 1994. Uma coletânea de velhos clipes. “7 television commercials”, de 1998. E um documentário enigmático, sem músicas completas ou entrevistas. “Meeting people is easy”, de 1999. Coerente com esse telão mesmerizador na Apoteose, que esconde mais do que revela os músicos em ação.
Seja como for, o DVD de um show sempre será uma fraude consentida. Um disco de áudio ao vivo é mais fiel a um show do que a sua filmagem. Permite-me viajar, imaginar o palco, recriar, participar. O DVD pode ter som Dolby 5.1, imagem HD, extras, o cacete, mas não me dá esse pancadão no meio dos peitos, não replica a magia da presença física dos caras ali adiante. Após tantos anos, tantas leituras e releituras na faculdade, agora que o Radiohead fecha o show com “Creep”, acho que afinal entendi o Walter Benjamin.Certas coisas não se reproduzem. Daí essa sensação de eu não estar aqui, de isso não estar acontecendo, de eu ter desaparecido completamente no meio de uma multidão de 20 mil devotos, de o momento já ter passado, bom demais para ser verdade. Então, aquele ali que não sou eu chora e tem aquela convulsão peculiar da cintura para cima, acompanhada de tremedeira no pé direito, um treco que ele chama de dança.
27/07/2009
O Globo/Segundo Caderno
0 comentários:
Postar um comentário