A história de uma videografia ímpar
Música para a cabeça. Música feita para a sensibilidade, para a provocação das mentes. Cabeça de rádio. Música para ouvir, música para ver. Já que «Kid A» não terá qualquer teledisco -- nem, a propósito, nenhum single -- promocional, justifica-se lembrar a videografia de uma das bandas mais gráficas de todos os tempos; e uma das que melhor música faz, também.
Depois de «OK Computer», o álbum da aclamação, os Radiohead voltam a fazer um disco com um título gráfico e minimal: «Kid A». Quem conhece toda a panóplia de criações gráficas que acompanha as edições da banda, com especial incidência no disco de 1997, percebe que a componente pictórica da música (que a serve ou é servida por ela) não é nunca descurada.
A iconografia, que uma consulta ao mais oficial dos sites não oficiais, o followmearound.com, pode dar a conhecer, e particularmente os telediscos que desde o início têm assinado, são elementos quase tão significativos como a canção, na construção do obtuso edifício artístico Radiohead. Depois do anti-single de «OK Computer», «Paranoid Android» (que tem mais de seis minutos), a banda resolveu, para a edição de «Kid A», não seleccionar nenhum single, nem rodar vídeos.
São atitudes corajosas, louváveis porque marginais, possivelmente estranhas; mas, analisando toda uma carreira, conclui-se serem apenas opções de coerência, por parte de um grupo que sempre valorizou a imagem, a capacidade pictórica que a música guarda, de montar cenários e panoramas e projectar personagens e ideias e inquietações com um fundo sonoro sugestivo, esquemático, passível de abrir ao ouvinte uma nesga para espreitar o universo imagético proposto, ou montar a sua própria narrativa de acção. «Kid A» leva estas premissa ao limite: ao ouvir o disco, só imagino os músicos a olhar para as canções e a pensar: como é que vamos agora fazer isto?
É como ter uma série de lindíssimos tijolos, um de cada formato diferente, e querer com eles construir uma parede. Não é fácil, mas conseguindo, fica de certeza uma parede única e peculiar. E custa a descodificar o acesso mental a estas faixas (melhor que chamá-las «canções» -- porque há em «Kid A» canções e não canções, melodia e só som, refrões e instrumentos, electrónica e orgânica). É um álbum desformatado, que se recusa a encaixar, que é disforme e harmonioso. Como os dentes de Thom Yorke.
Adoro os dentes do Thom. Em quase todos os vídeos dos Radiohead, lá estão eles, assustadoramente autênticos, horrivelmente a prova do que somos e onde fraquejamos, do que assumimos e do que fingimos, da verdade e da máscara. Detentores de uma magnífica videografia -- da qual a amostra mais representativa está compilada na cassete VHS «7 Television Commercials», que será a matriz para este texto -- os Radiohead protagonizam autênticas obras de arte, pequenas provocações com uma intenção estética e contemplativa, cujo sentido é intensamente ampliado pela contribuição musical.
A música vive muito disto ou nada disto sobrevive à música? Serão os dois suportes independentes face à genialidade que a ambos está subjacente? Tomemos «Fake Plastic Trees», de «The Bends». Qualquer vídeo é um bom exemplo: há aqui uma coerência, uma gestão da conceitualidade que os associa e diferencia, os torna únicos mas irmãos. Dirigido por Jack Scott, parece ser uma alegoria para a voracidade do consumo de massas -- os membros da banda são passeados, dentro de carrinhos de compras, pelos corredores de um pseudo-hipermercado, onde os potenciais clientes encenam gestos de desequilíbrio e os repositores das estantes usam as máquinas de rotular como arma de violência.
Os produtos à venda, todos iguais, insistem no perigo do tipo, da série, e o ar de plástico descartável de tudo aquilo é fortemente posto em contraste com a imagem dos dedos de Thom, e dos fabulosos dentes. No final, uma debandada generalizada esvazia o hiper; quase, porque uma criança resiste. Personagem recorrente nos telediscos dos Radiohead -- basta relembrar «Street Spirit» ou «Paranoid Android» -- a criança simboliza a pureza num mundo perdido. Os Radiohead não se fazem de salvadores. Tal como nunca aparecem sozinhos num vídeo: há sempre figurantes, que até são frequentemente os protagonistas.
Em «Paranoid Android», os Radiohead são evocados pelo boné de Robin e pelas aventuras no bar onde este e o amigo Benji vão beber -- a banda está sentada numa das mesas. Mas toda a acção se centra nestas duas personagens, criadas por Magnus Carlsson, sobre as quais se pode ler tudo, mas tudo, no followmearound, que se deslocam de táxi numa grande cidade e cuja vida é subitamente cruzada com a de um deputado falhado, que decide também meter-se nos copos. Esta demencial ilusão de animação não foi bem recebida -- para já, a MTV censurou as maminhas das sereias e das putas, mas não ficou chocada com o homem que corta à machadada as suas próprias pernas e braços -- e fica para a posteridade como um dos vídeos menos normais da história do rock. É bizarro, perverso e sarcástico: na loja de animais, dois hamsters estão a copular. Robin, enquanto protótipo do inocente, joga ping-pong com um anjo. Thom Yorke canta «God loves his children».
No limiar da consciência. Como «Street Spirit». Filmado num deserto nas imediações de Los Angeles, por Jonathan Glazer, o tema do álbum «The Bends» é, para Thom, o «mais puro». No tal site reproduz-se um testemunho incrível do vocalista sobre esta canção, que só se entende plenamente quando se acompanha com vídeo. A preto e branco e adornada de uma quantidade de efeitos que fazem coincidir, num mesmo plano, imagens em câmara lenta e imagens em velocidade regular. Elegante e onírica, «Street Spirit» troca os tempos e os ritmos e escolhe a areia para simbolizar a passagem do tempo. Os músicos sorriem de prazer; como nós.
Thom Yorke não esconde aqueles dentes. A criança, sempre a criança, está lá: e enfrenta, com a mesma imperturbabilidade, um cão feroz e um insecto asqueroso. Bailarinas atravessam a cena, perfazendo com beleza inefável um vídeo de constante claro-escuro. Em «Karma Police», de «OK Computer», Jonathan Glazer reincide numa linguagem do oblíquo: somos sentados a conduzir um carro, em cuja parte de trás está Thom, que avança por uma estrada mergulhada na noite. Acabamos por ver um homem a correr, a fugir de nós. O carro, de estofos vermelhos, joga com ele uma perseguição de brincadeira, recuando para ganhar balanço e tentar uma investida. Antes de tudo, porém, numa ilógica inversão da história, o carro acaba consumido pelas chamas. Outros finais improváveis: o de «High & Dry» e o de «Just», ambos de «The Bends».
O primeiro, passado no restaurante Dick's Diner (3188 Alvarado Street, San Leandro, Califórnia), filma, na mão de Paul Cunningham, as refeições de várias pessoas comuns, que são quem canta a letra. Pesados segredos adivinham-se nas faces de clientes e empregados, um enredo que tem início numa misteriosa mala que despoleta momentos de flash-back e finaliza na explosão de um automóvel. A cena na casa-de-banho -- onde volamos a encontrar uma criança -- é reveladora. Quanto a «Just», é praticamente uma fábula, filmada por Jamie Thraves em Londres. Do cimo de um bloco de apartamentos, a banda, enquanto toca, assiste a uma inusitada cena que ocorre na rua: um homem está deitado no pavimento, sem qualquer razão para tal.
A preocupação, admiração e consequente indignação das pessoas que passam, que insistem -- sabêmo-lo pelas legendas dos diálogos -- em saber o porquê daquela repentina atitude (que teve origem junto a uma banheira, tal como «Paranoid Android»). O homem cede, nós não somos privilegiados com a informação: e os Radiohead garantem que nunca revelarão o segredo. A verdade é que todos os transeuntes permanecem, quedos como mortos, na rua, no final de uma bizarria inócua mas intrigante. Da janela, os membros da banda espreitam: mais uma vez os dentes de Thom Yorke estão presentes.
Não, contudo, com a persistência do vídeo de «No Surprises», de Grant Lee, rodado para «OK Computer», em que a cabeça de Thom, enfiada num capacete de vidro, ocupa o écrã, devora-o sem maquilhagem e com barba por fazer e os dentes aproximam-se de nós como nunca. A letra da canção é reflectida no vidro, o qual começa paulatinamente a encher-se de água, deixando Thom submerso por 57 segundos, qual cabeça conservada em formol, enquanto luzinhas por trás de nós acendem e apagam, tipo estação de metropolitano. É cada um de nós, em cada momento, como numa alucinação, o chamado a olhar o sentido e o absurdo, o belo e o grotesco, a admirar ou a odiar a impressão de uma dentada no vídeo.
Mónica Guerreiro
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